Cuidar de criança é uma tarefa coletiva
Por Sylvia Siqueira Campos, diretora do MIRIM Brasil
Que bonito o mundo seria se todas as crianças recebessem o mesmo tipo de cuidado. Na barriga da mulher, que, ali, já vai se tornando também mãe, no convívio familiar e comunitário, na creche, na escola, nos lugares públicos. O bom é que o Brasil avançou em termos legais. Mas a nossa vida cotidiana ainda não assimilou essas mudanças. O interessante é que o desejo de ver todas as crianças bem cuidadas permanece vivo nos nossos sonhos. Então, como tornar realidade esse novo mundo?
A gente poderia falar aqui de muita coisa. Montar uma análise sobre a efetividade das políticas públicas poderia ser a parte mais contundente. De fato, elas são imprescindíveis. Mas não faremos isso agora, pois falta algo mais profundo antes dessa análise. Está faltando responder a pergunta sobre que mundo a gente está ajudando a construir e que vai ficar para as próximas gerações. Isso tem relação direta com as escolhas mais simples que fazemos todos os dias. Essas escolhas, por sua vez, dizem quem a gente é e como a gente enxerga a outra pessoa, inclusive as crianças. Você já se perguntou, por exemplo, por que as crianças em situação de rua, à espera de adoção, os e as adolescentes no sistema de medida socioeducativa, as adolescentes grávidas ou ainda vítimas do trabalho infantil, na sua grande maioria, são negras? Será que a fórmula de desenvolvimento atual rompe os ciclos de pobreza? É possível que nossa forma de vida reforce o sistema que alimenta as desigualdades, os estereótipos e violências institucionais?
Não são perguntas fáceis de responder, ainda que em silêncio. Exige paciência, mas também requer coragem. Ninguém está errado ou errada por cuidar da sua criança, da sua família. A questão em si é não entender que esse estado de bem-estar precisa ser acessível a todas as crianças de todas as áreas da cidade em que a gente mora, no mundo inteiro. Casa, comida, roupa, brinquedo, lazer, transporte, esporte, informação segura e tudo o necessário para que ela se desenvolva de forma segura, saudável e feliz deve ser disponibilizado como um direito, e não como um produto de mercado. Leva quem pode pegar. Leva o melhor quem pode pagar mais.
Neste momento da leitura, você pode achar que não tem controle dessa mudança. Eu poderia até concordar. Mas eu sei, por vida-luta, que é possível contribuir para a transformação da estrutura da sociedade que tem condenado crianças negras à pobreza e outras violências. Felizmente, fui uma criança negra e periférica que recebeu atenção e cuidados de várias famílias e, hoje, posso afirmar que o nosso maior erro é não reconhecer a urgência da tomada de consciência política. Isso não é sobre partido. É sobre o desejo do mundo que a gente quer e como a gente se engaja para construí-lo. É sobre reconhecer que, sim, racismo e gênero são dois dos elementos que desenham a desigualdade. O sistema capitalista, que organiza a sociedade, é o terceiro componente do abismo entre as crianças. Essa estrutura perversa, e tão sutil porque é naturalizada, maltrata a grandiosa maioria de crianças no mundo.
Tem jeito de contribuir para cuidar de todas as crianças? O bom é que tem. Não é preciso um grande ato heróico-salvador. Cada pessoa deve assumir essa co-responsabilidade porque a questão é complexa, mas as ações são específicas. A gente pode começar enxergando as crianças ao redor, no círculo mais próximo. Apoiar o desenvolvimento físico, psíquico e emocional das crianças das famílias que trabalham onde a gente trabalha ou onde a gente mora. Demonstrar solidariedade material no processo educacional e alimentar dessas mesmas crianças. Entender criticamente o porquê da inexistência de creches, o que dificulta a autonomia financeira das mulheres e a geração de renda familiar. Logo, cobrar a construção de novas creches em todo o território da sua cidade. Essa mesma cidade precisa do seu engajamento direto observando a aplicação das leis, analisando as políticas públicas, exigindo melhorias para todas as crianças. Nunca deixe de denunciar uma violência. Fazer com que a criança recebe essa atenção individual e pública é cuidar também da família. Essa noção e prática de cuidado transforma. Crianças que foram cuidadas aprendem a cuidar de si e das demais pessoas. Basta a gente se engajar que esse mundo tem jeito!
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